22.2.12

curtinho, para poupar i)

A partida nunca é inteira. A vontade é plural e puxa para todos os lados.

2.2.12

Terceiro.

Parece que aqui a pasmaceira somou três aniversários e, para não destoar dos costumes, ninguém reparou. A culpa, confesso, não me aflige o suficiente para vencer a inércia e o estaminé, pelo que de mim depende, vai permanecer entregue às moscas por tempo indefinido. 

29.8.11

sem_título i)

Saboreando o invariavelmente agridoce fim de Agosto, as sobras secas do que foram, noutros tempos, gentes estranhamente produtivas nisto de escrever em blogues, dedicam-se a ponderar, cuidadosamente, o próximo passo. Deixar isto às moscas, ou fechar a porta de vez, eis a questão.

9.5.11

Música lx)

Vidas estéreis não geram memórias. Tem de haver merda, para adubar.

5.5.11

Livro dos despautérios vi)

Nas últimas semanas sumiram-se-me os vocábulos todos, desarticularam-se os mecanismos de sintaxe mais primitivos e acabou-se-me o novelo das ideias, enrolaram-se-me as costas, encovaram-se as olheiras e desmancharam-se-me os artelhos. Hoje, dia oito mil setecentos e sessenta, constato, com receio, que não estou a ficar mais lesto, nem das ideias nem dos ossos. Não obstante, gosto de me agarrar à promessa de dias de ubérrima criatividade intelectual e soberbo vigor físico, não com um optimismo miúdo, desse que é o egoísmo dos distraídos, mas com genuína vontade de ir somando aos meus milhares de dias repetidos, uns quantos que valham a pena. 

12.4.11

Música lix)

Após três estações a inventar números romanos, eis que, com o regresso do ar a verão, voltamos a contar as músicas como deve de ser.

25.3.11

Livro dos despautérios v)

A receita conta-se pelos dedos de uma mão. A farinha, da que estraga os olhos lindos da moleira, o isco, que vem sendo ressuscitado, semana sim semana também, desde ninguém sabe quando, o sal, que é a alma, a água, morna como a pele, e o amor, para garantir que tudo cresce. Os sentidos são a balança que, ao contrário dos mecanismos convencionais, aumenta de precisão com o uso do tempo.
O pão é como uma história sem segredos. Um bocadinho de atenção descobre o calor do forno, a moagem do grão e a dureza da água, o peso das mãos de quem amassou e o tempo que se esperou a massa.
O meu sono nunca se vai acostumar à noite dos outros. Não é insónia nem é espertina, é ser padeiro, de berço e de vontade.

16.3.11

Música xlxviii)

Eventualmente, acorda-se.

12.3.11

Livro dos despautérios iv)

Habituei-me à singularidade da minha cama de casal e, ultimamente, até me agrada a violência da jornada matinal rumo às rotinas diárias. O limbo ensurdecedor que separa as estações de metropolitano tem-me revelado evidências que, estou certo, não são novidade para ninguém.
A saudade é do espírito o que a fome é do corpo. Elas crescem de coisa nenhuma e eles, sem nada, desaparecem.

25.2.11

Música xlxvii)

Longe da guerra e dos braços do seu amor.

24.2.11

Livro dos despautérios iii)

A linearidade é uma aldrabice. É solúvel em vinho. Dobra-se a pulso ou à sorte. Nós, gente miudinha, somos tão mestres da ilusão que nos iludimos da nossa mestria. Gostamos de ignorar, por afinidade de lógicas, que a linearidade é quase sempre uma aproximação grosseira, tirada a ferros, inventada para sossegar ou afligir sem espinhas. Andar enganado é mais fácil. Ainda assim, quer no aborrecimento, quer na exaltação, e sobretudo quando as circunstâncias aparentam uma clareza e definição que não deixem apetite à dúvida, eu recordo a facilidade com que me deixo enganar por mim mesmo, escolho um assento que me pareça adequado e, com o maior dos vagares, me debruço sobre as curvas que sei que vou encontrar, ainda que toda a gente me diga que por ali é sempre a direito.

6.2.11

Música xlxvi)

A gente estranha está finalmente de "férias", Vi-mo-nos gregos pra merecer esta semaninha de viagens descalças e tardes de contemplação.

3.2.11

Livro dos despautérios ii)

Não consigo decidir o que é pior, ter de ir dormir ou ter de acordar. Empato o sono com assinalável destreza, recorrendo à inércia de um qualquer desinteresse televisivo ou cibernético, geralmente embrutecedor do intelecto e invariavelmente dispensável. Não sei que tipo de bicho me mordeu esta aversão à cama, mas presumo que será da mesma família do que, todas as noites, me morde uma preguiça incapacitante que se manifesta à hora de levantar. Muito mais que uma caprichosa falta de vontade, a manhã, ou a tarde, dependendo dos dias, trás com ela uma moleza avassaladora. É comovente a intensidade dos argumentos esgrimidos na luta que vou travando com a minha consciência, enquanto lanço as mãos numa desgovernada busca do botão que adia o martírio da verticalidade, dez minutos de cada vez. Não consigo decidir o que é pior, suportar as pequenas violências que nos afastam do que é ser, em essência, um vegetal, ou tolerar o inacreditável espaço que damos às trivialidades. 

19.1.11

Livro dos despautérios i)

Sombreio com precisão tudo o que fica entre mim e o chão. A minha extensa verticalidade é suficiente para anoitecer uma considerável porção de terreno num magnífico eclipse profético, aos olhos dos bichos, pelo menos. A haver sol, é o que faço melhor, não havendo, faço pouco mais que providenciar um distinto abrigo para o vento e, no caso de uma franciscana falta de melhor, para a chuva que possa vir de empurrão com ele. Tudo isto sem recorrer à notável faculdade do movimento e, melhor ainda, sem qualquer esforço intelectual. Quieto, mudo e estúpido.
Tenho tido saudades das alturas do ano em que, luxo raro, me é permitido ficar quieto, mudo e estúpido.

18.1.11

Segundo.

Aqui a obra cumpriu dois anos de existência e ninguém se lembrou. Custa-me crer que, em tão vasta legião de seguidores, ninguém tenha ficado com a sensação de se estar a esquecer de alguma coisa muito importante durante o dia, e daí, agora que atento bem no assunto, talvez nos estejam só a castigar pela escassez de  actualizações. De qualquer das formas, agradeço, em nome da desaparecida equipa, a vossa lealdade à casa ao longo destes vinte e quatro meses. Obrigado Inês e Andador, (quem se sentir descaradamente excluído, faça o obséquio de se manifestar).

24.12.10

Música xlxv)

Não são as notas, são os silêncios no meio delas.

Queijadas de Limão.

Tens de ir buscar três ovos. São especiais, os ovos, muito distintos e singulares por diversas razões. São comida para todas as mesas, das mais ricas às mais pobres, ou não fizessem eles par perfeito tanto com a mais ordinária das chouriças como com a mais refinada das trufas. Trás um limão pelo caminho, bem grande. O limoeiro está enorme, muito maior que no dia em que esgravatei o meu nome nele, com o canivete em que não se podia mexer. A memória dos cheiros é uma faculdade soberba, se me encostasse aqui, tinha lembranças para a tarde toda. Tens de raspar o limão todo, de medir duas canecas de açúcar e uma de farinha. Nada que leve mais açúcar que farinha pode dar errado. Agora, o cheiro lembra-me o meu avô, que vai observando atentamente, sem nunca falar, e o tempo em que o ficava a ver amassar o pão. Sempre achei que os meus horários de padeiro são coisa de família. Só faltam duas canecas de leite e uma colher grande de manteiga derretida. Mistura-se tudo, sem contemplações piegas nem segredos misteriosos. Usa a varinha da sopa, para ficar tudo bem suave. 
Liga o forno a cento e sessenta graus. Ou cento e setenta. Não te queimes Zézinho. A espera, de trinta ou quarenta minutos, conforme o tom dourado da crosta crocante que se vai deixando formar em cada uma das formas do tabuleiro, cuidadosamente untadas com manteiga antes de terem sido enchidas, até cima, serve para ir recordando o tempo em que o Natal brilhava nos olhos dos mais pequenos. Agora são vocês que fazem os doces, já viram?  
Vamos tentar tirá-las. Calma avó, quando nós éramos pequenos, esperar era um martírio, agora é a avó que tem pressa? Sou, tira-as agora que o avô não está a ver.

10.12.10

Café Cheio

Acabo de almoçar e vou ao café três portas ao lado. 'Churrasqueira Xico: comida take-away', anuncia uma faixa em letras grandes e orgulhosas. Sentados na esplanada estão dois senhores de alguma idade a olharem atentamente, quais falcões em busca da presa, para uma estrada deserta.

Entro e sou atendido pelo homem, atrevo-me até a dizer a lenda, que dá o nome ao estabelecimento. O Xico apresenta-se sorridente, com uma t-shirt que realça (e deixa um pouco a descoberto) uma barriga que chega a qualquer lado com alguns segundos de avanço. A testa ligeiramente lustrosa e os cabelos de lado molhados. Enquanto os mecânicos comprovam que estiveram a trabalhar num carro com as manchas de óleo, os donos das churrasqueiras apresentam o suor como prova do calor das frituras.

Depois da conversa 'então, tudo bem?' inicial, faço o meu pedido. Era um café cheio e um copo d'água, se faz favor. Agora vai ter de esperar um bocadinho, que está na hora do meu, responde-me o Xico, enquanto se senta. Bebe o seu café, fuma o seu cigarro, conversa com o companheiro de mesa sobre cheiros. O tema pareceu-me apelativo, mas infelizmente não consegui ouvir o conteúdo da discussão.

Passados dez minutos, depois de ter bebido, fumado e espreguiçado, dirige-se calmamente para dentro. Põe o chapéu de cozinheiro com muito cuidado, fazendo lembrar os preparativos dos cirurgiões antes de entrarem no bloco operatório. Depois dessa cerimónia, lá atende o meu pedido.

Isto sim!, é o verdadeiro café (no sentido de local, não da bebida). Não são cá esses estabelecimentos que a maioria das pessoas costumam frequentar, em que são servidas logo que se sentam. Ainda vou lá voltar antes de me ir embora. Acho que vou ter de jogar com a hora do futebol ou da novela.

4.12.10

Frio.

Sou de extremidades frias. Tenho os pés e as mãos longe da barriga e suponho que seja esse afastamento o principal culpado de semelhante tendência para arrefecer pelas pontas, já que a minha circulação sanguínea é, tanto quanto sei, soberba, e que o meu brilhantismo, infelizmente, não tem o calibre necessário para ser responsável pelo desvio de caudal circulatório que justifique tamanho fenómeno refrigerativo nas mais afastadas fronteiras corpóreas. Não me incomodo com nada. Nem quando a sensibilidade dos dedos dos pés, já de si reduzida, se deixa substituir por uma sensação bizarra, como se me estivessem a doer os pés de outra pessoa, nem sequer quando as mãos começam a ficar gradualmente mais lentas e inúteis, exigindo atenção e mimo. Hoje, enquanto vou ignorando os pés de não-sei-quem que me vão doendo do outro lado da cama, vou fazendo o gosto às mãos, à velocidade que a temperatura vai permitindo, e vou empilhando frases compridas, cheias de vírgulas e desinteresses. Não me incomodo com nada.

19.11.10

Música xlxiv)

Podia escrever um livro de lugares comuns, a apontar evidências.

18.11.10

Saudades Tuas.

Por norma, estico-me devagar, sobretudo porque ao comprido o sono se apressa, e aguardo, num sossego mudo, que a noite me desça também sobre os olhos. Tenho tido saudades tuas. O Outono tem o condão de espicaçar a lembrança do teu corpo enroscado no meu, num novelo de calor. Pode ser que seja do frio, meio irmão da solidão, ou pode ser só mariquice, de qualquer forma, a tua ausência deixa-me suficientemente inquieto para rebolar uns minutos inconformados. Pensava que podia armar-me em homem e adormecer logo tudo de uma vez, te-lo-ia feito, noutro tempo, antes de te saber a outra metade da minha noite, mas agora já não consigo. Tenho tido saudades tuas.

12.11.10

Dívidas

A Dona Maria Josefa (Ti'Jefa, como era mais conhecida), vivia numa localidade pequena. Bem sei que esta não é uma designação apropriada do ponto de vista legal ou geográfico, mas é a que melhor se aplica neste caso.

Era uma aldeia porque toda a gente se conhecia e se tratava pelo nome, mas o local não tinha uma dimensão tão pequena para uma classificação tão redutora. Ao mesmo tempo, era também uma vila. Tinha a pacatez, o silêncio e a lentidão adequada, mas faltava-lhe aquele cheiro tão característico de nostalgia e de passado. A última hipótese é que fosse uma cidade. Mas não era, porque lhe faltava uma escola e um hospital, isto visto por um advogado, e faltava-lhe aquela impessoalidade própria de quem se senta num comboio sem olhar para quem está sentado ao lado, isto visto por um sociólogo.

Por tudo isto, a localidade ficou presa num tempo que teimava em não passar e suspensa num espaço sem nome.

Voltando à Ti'Jefa. A sua sorte era que tinha o monopólio da sua área de negócio. Era a única pessoa que se podia orgulhar disso.

O Zé das Roscas que, como o nome indica, fazia vida na venda de parafusos e outros elementos roscados, tinha como concorrente o Quim Porcas. Mas o Quim achava que a sua veia comercial pulsava demasiado para se limitar apenas a um negócio e, por isso, para além das porcas metálicas, vendia também as cor-de-rosa, mais viradas para o bacon do que para as ligações mecânicas.

Mas o seu bacon não era o único. O Chico Bicho vendia todo o tipo de animais. Vivos, mortos ou assim-assim. Grandes ou pequenos. Comestíveis ou demasiados irrequietos para serem cozinhados. Burros ou inteligentes. Burros ou bois. Ou vacas. Ou porcas. Aí está, voltamos ao bicho cor-de-rosa.

Mesmo os correios, que em todas as cidades tratam de todas as cartas, aqui tinham concorrência. Havia um habitante que, em troca de três cigarros e um café, dizia que fazia chegar as cartas aos destinatários, desde que estes vivessem dentro dos limites da localidade. Depois pegava nesses três cigarros e, quando chegassem aos dez, guardava dentro de uma caixinha de cartão, fechava e ia vender na rua. Com o dinheiro que fazia pagava ao carteiro para entregar as cartas que lhe davam. O negócio não era brilhante, mas ao menos ganhava uma bicade borla.

Mas na localidade só havia uma padaria. Mais ninguém vendia pão. Havia muita gente que vendia farinha, ovos, fermento e sal. No entanto, só uma pessoa vendia os ingredientes amassados e cozidos: a Ti'Jefa. Não deixava de ser curioso que numa cidade com tantos negócios paralelos só existisse uma padaria. A justificação era simples: mais ninguém sabia fazer pão tão bom. Antes do sol nascer, quando este fervia lá no alto ou quando já se preparava para dizer adeus, fosse qual fosse a altura do dia, o pão da Ti'Jefa era sempre fresco. E mais curioso ainda era o facto de, mesmo em casa e guardado numa lata durante dois dias, quando era levado à boca, já um pouco a medo, parecia que tinha sido acabado de fazer. Qual seria a lógica de abrir um negócio que tivesse a sua morte anunciada?

Assim a padaria estava sempre cheia. Enquanto todos os outros comerciantes passavam por épocas de vacas magras (que o diga o Chico Bicho, que durante um ano teve estes animais literalmente escanzelados) e de vacas gordas, este negócio tinha só época obesa. E como a população precisava mais da Ti'Jefa que a Ti'Jefa da população, todos toleravam a sua estranha mania. E embora todos protestassem com o que achavam ser um capricho, isso nunca mudou nada. Se não aceitavam, podiam ir embora. Mas como não havia pão em mais lado nenhum, acabavam por ceder e voltar.

Antes de cada pagamento, a Ti'Jefa exigia um histórico dos cinco pagamentos anteriores que o dinheiro tinha feito. Tudo discriminado: quem pagou a quem, onde, em que dia e a que horas. Se algum destes pontos obrigatórios falhasse, o pagamento era recusado. O dinheiro e o cliente voltavam para trás e, até este cumprir com a estranha exigência, não saia nada do cesto da padaria. Houve mesmo quem tivesse ficado dois dias sem comer pão por não conseguir arranjar, de um dia para o outro, dinheiro limpo.

A justificação desta bizarra mania era simples: dinheiro que vem de dívida atrai mais dívida. Até ter feito cinco pagamentos honestos e imediatos, está amaldiçoado. Quer fugir das mãos, ir embora, escapa-se por entre os dedos e pelos espaços entre as tábuas do soalho. E quando uma pessoa dá por isso não tem nada, só contas pendentes e nenhuns cifrões.

Até que chegou a crise, e nessa altura ninguém conseguia pagar a pronto. Ninguém tinha dinheiro, e quando por milagre alguém arranjava algum, era logo usado para liquidar contas pendentes. Andava de mão em mão, de dívida em dívida, e não havia hipótese alguma de fazer cinco pagamentos honestos e imediatos.

Mas nem assim a Ti'Jefa largou essa incómoda e cara superstição. Durante largas semanas o pão ficou à espera nos cestos da padaria, sem que ninguém tivesse dinheiro limpo para o comprar. Muito a incomodaram, imploraram e insultaram. Tentaram apelar ao seu bom senso, não fazia sentido que a localidade ficasse sem pão por uma teimosia. Mas ela não cedeu.

Até que um dia decidiu que realmente não fazia sentido continuar a fazer pão que acabava, todos os dias, por ser dado às galinhas e aos cães. Deixou então de cobrar. Passou de negócio a caridade. 'Se todas as notas nesta cidade estão sujas com dívidas, então não as quero. Não vou aceitar dinheiro que me vai pagar a falência'.

4.11.10

Mau Maria.

Isto vai ser curto e grosso. Alturas tivemos, aqui entre a gente estranha, em que as actualizações do estaminé não se ficavam pelo quinzenal forçado, alturas em que, num dia bom, se enchia o olho do freguês duas vezes, ou até três. Todos sabemos que as mercearias dependem muito mais da paixão que dos lucros, por culpa dessa história dos grandes centros comerciais, deslealmente competitivos. Lanço portanto a pergunta, onde andam os outrora tão activos colaboradores deste espaço? Venderam as almas ao facebook, ou também acham que a vontade do tempo é mais forte que a vossa?

3.11.10

Vinte e quatro.

Os pássaros assobiam as primeiras claridades lá fora, declarando oficialmente mais uma noite em branco. Tenho sono. Não teria qualquer dificuldade em adormecer se tentasse, a cama é do melhor que se pode pedir, macia e bem guarnecida de coberturas, o cansaço é do que pesa no corpo, como uma subtil multiplicação da força de gravidade que se traduz numa lentidão de paquiderme à medida que me vou arrastando de divisão em divisão, só não me apetece ir dormir, por enquanto. O silêncio do meu dia velho vai sendo interrompido, a espaços, pelo bulício do dia novo dos outros.
Esqueço-me sempre, algures entre a rotina e a inércia, que cada dia é, espante-se, um dia novo. Pior, tendo a confundir uns dias com os outros e acuso-os, injustamente, de serem todos iguais. Reclamo da ausência da novidade como quem reclama que a sopa está insossa, e atrevo-me a apontar o dedo aos que, de uma forma ou de outra, estão próximos o suficiente para serem responsáveis pela falha.
Salpico o vidro da janela com impressões da ponta do nariz, alternando as ideias entre quem é o chefe da cozinha da vida e a quantidade de tons de azul que são inventados todas as madrugadas. Decido ir dormir, afinal, para amanhã estão guardadas vinte e quatro horas, todas novas, se eu quiser.

25.10.10

Música xlxiii)

Se me fizessem justiça às vontades, davam-me uma casota de tábuas à borda de uma praia qualquer, do Tejo para baixo, e deixavam-me ser ermita à vontade. A mim, à guitarra que o Muna me emprestou, e à musica.

20.10.10

Outono, outra vez.

A vontade anda timbrosa e o humor anda como os dias, mais ou menos húmido. O amor anda caduco, desafina com qualquer ventinho e cai todo para o chão, como as folhitas estaladiças, que morrem todos os anos só para alimentar metáforas e que ficam por aí a amarelar a cidade até que alguém as apanhe. O malabarismo é difícil e a única certeza é que, ainda que esteja sol agora, mais logo pode chover, ou ao contrário, pouco importa para o caso. Os Outonos de ser gente obedecem, ainda que não por regra firme, à ordem das estações como as conhecemos, sendo, portanto, comummente precedidos por Verões quentes, melosos e curtos. É só no fim dos Verões que o sono tira férias, para garantir que não perdemos pitada do que vai esmorecendo à nossa volta, e damos por nós a tentar encontrar desculpas esfarrapadas para amaciar o espírito, como as cores que são tão bonitas, ou o cheiro que vem do chão, ou o quente das castanhas que, ao quilo, nos custam a jorna e os sapatos, e um bocadinho da alma, se formos mais pobres. Quem esteve atento às lições de estudo do meio, saberá de antemão que um bocadinho de persistência e uns meses de galhos despidos, apontados ao céu, são suficientes para que a sorte se denuncie e o jogo recomece do início. No entanto, por enquanto, é Outono, outra vez.





12.10.10

A Árvore da Música

Sempre odiei a chamada música clássica. Durava mais que quatro minutos e não tinha ninguém a cantar em inglês e / ou a martelar numa guitarra. Não percebia onde estava o fascínio. Ainda para mais, tudo aquilo soava a gente morta, gravado na altura em que o mundo ainda era a preto e branco. Pelo outro lado, as músicas em inglês de quatro minutos que ouvia na Rádio Nostalgia só podiam ser tocadas por pessoas vivas e ainda aí para as curvas. Só mais tarde é que vim a saber que em 1997 já tinham morrido o Elvis Presley, o John Lennon e o Freddie Mercury.

Até que um dia, durante um zapping e a prestar pouca atenção ao que ia aparecendo, vi por acaso um filme sobre a vida do Beethoven. Não vou dizer que o filme era de segunda categoria, porque seria ofensivo para os outros que se incluem nessa classificação. Era de terceira para baixo. E apesar do argumento ser mau e dos actores parecerem saídos das sobras de um casting para uma novela mexicana de hora de almoço, foi aí que mudei a minha opinião em relação à música clássica.

A partir daí iniciei a minha exploração desse universo, começando pelas obras mais óbvias e mais fáceis (geralmente as que enchem CD's com nomes como 'Classical Music for People Who Hate Classical Music', 'Classical Chill Out' ou ainda 'Classical For Beginners'), e fui seguindo para o que me recomendavam ou ia descobrindo por conta própria. E nestes seis anos ouvi tudo o que me deram para as mãos - sonatas, concertos para vários solistas, sinfonias, obras diversas - passando por vários compositores e por várias épocas.

Isto não fez de mim um entendido mas sim um grande apreciador. Nunca me refiro a uma obra dizendo que é boa ou má, classificação que implica necessariamente conhecimento técnico / teórico, mas sim em relação ao meu gosto pessoal. Por isto mesmo é possível que o que vou dizer abaixo seja, para alguém minimamente entendido no assunto, um enorme disparate ou uma constatação básica de um facto mais que conhecido. Mas aí vai...

Gosto de olhar para a evolução da música como uma árvore: tem as suas raízes, o seu princípio (há 100, 1000, 100000 anos?, deixo o número para os entendidos), e ao longo do tempo surgem ramificações que se entrelaçam, umas mais outras menos, entre si, mas tudo vem de uma fonte comum, e cada 'andar' novo da árvore é moldado e tem um pouco dos 'andares' anteriores.

Quero com isto dizer que, ao longo do tempo, a música foi evoluindo, e a partir do que era conhecido na altura foram criados novos géneros, formas e estilos. Algumas dessas mutações são as ramificações de que falei acima, que crescem numa dada altura, mas eventualmente o crescimento pára sem dar origem a ramos novos.

Por isto é possível ouvir em música moderna (ou semi - moderna) ecos muito mais antigos. E no caso que eu vou referir, com 200 anos de diferença.

Alguns andamentos de sinfonias e concertos, na situação a que me refiro são do período romântico, ficam no ouvido devido à sua simplicidade e à repetição da sua melodia. Ouve-se uma vez, e é logo decorada. São facilmente assobiáveis. Basta ouvir os três primeiros minutos dos exemplos abaixo para perceber isto.



Esta simplicidade de melodia foi transportada para a música mais popularizada na segunda metade do século XX, especialmente rock e blues. Isto é facilmente observável pelas guitarras destes géneros - aqui o termo popularizou-se como riff. A linha da melodia é simples e repetitiva, criando o mesmo efeito que os dois andamentos acima. E tal como estes, as músicas abaixo tornam-se facilmente assobiáveis.



Estes são apenas alguns exemplos que achei que ilustravam muito bem a ideia que queria transmitir. Podia ter referido muitas outras obras: o 1º andamento do concerto para violino em Mi Menor, de Mendelssohn, uma passagem do Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky - isto nas obras pré-século XX. No pós-século XXI: Deep Purple - Smoke on the Water, The Rolling Stones - Satisfaction.

8.10.10

A vida do indivíduo quer-se uma monarquia. Em determinado momento herda a liderança singular de si mesmo e, daí para a frente, até findar ou abdicar do posto, mais ou menos voluntariamente, é rei do seu umbigo e de toda a vastidão corpórea que a sorte lhe destinou, bem como de todas as riquezas nela encerradas e de todo o céu ao alcance de uma braçada larga. Nascido sempre rei de si mesmo, o indivíduo passa pelo limbo que é digerir todas as memórias de infante, sujeito à sensibilidade que os acasos da educação lhe reservarem e ao filtro imprevisível do seu intelecto particular que, em metáfora, poderá ser comparado a uma sopa de novidades feita segundo a receita da fome. Chegada a altura de tomar as rédeas da existência, de tomar em mãos o mais nobre dos serviços, ao contrário do que a história poderia fazer prever, não se assinalam datas, nem com pompa nem com circunstância, não se soltam fogos nem se domam elefantes, não desfilam exércitos nem se ouvem vivas, não se recebe nenhuma coroa inútil e difícil de limpar. Há quem tenha o privilégio de um abraço, que no fundo é o melhor que se pode pedir, e depois, bem, depois é o que deus quiser.





(Texto escrito para o "Adeus até ao meu Regresso")

25.9.10

Música xlxii)

É bom poder guardar os abraços.

23.9.10

Férias Grandes

Este vento fresco até ajuda e, se me concentrar, consigo alinhar a respiração com o acelerar da passada. Mais depressa. A calçada é tão bonita, toda entalada de improviso, mas não é tempo de passeios, que o balanço é precioso e não tenho paciência para lidar com o prejuízo de abrandar por um capricho. Mais depressa. As esquinas são traiçoeiras, custa dobrá-las à confiança que não vem ninguém do outro lado, não que me assuste a previsível violência de uma hipotética colisão, só estou desconfortável com o facto de não ter todas as variáveis sob controlo. Mais depressa. Deixo cair o casaco de capuz, a falta que me vai fazer é insignificante, comparada com o arrasto aerodinâmico que produz. Mais depressa. Sorrio por defeito, não tenho presença de espírito para esconder o meu entusiasmo dos transeuntes, sorri-me de volta um velho, Corre, corre por ti e por mim, rapaz. Mais depressa. Não esperava ter que dar mais de duas voltas ao prédio, afinal, e apesar de ter desprezado as pequenas hesitações das esquinas, os cento e sessenta e três metros, medidos a passo largo, deviam ser mais que suficientes. Mais depressa. Talvez tenha sobrestimado o meu poder de aceleração, ou talvez seja das sapatilhas. Mais depressa.

A calçada é mais simpática com a vista que com os joelhos. Custa abrir os olhos, assim a olhar para cima, Levanta-te rapaz, ouvi o velho rir enquanto me endireitava com uma força surpreendente, Para onde ias tu, a correr dessa maneira?

Não sei bem para onde ia, mas se as contas estiverem certas, sei bem para quando ia. A última coisa que recordo é ter sentido as pernas a ficar para trás, como seu eu estivesse a fugir de mim mesmo, deve ser isso que se sente quando se está prestes a conseguir. Acho que a tua mãe está a chamar, disse o velho enquanto me sacudia. Tinha ficado muito sério de repente e tinha ar de quem sabia exactamente o que eu estava a fazer, apesar de eu não ter dito nada.

Vou ter de viajar no tempo amanhã, hoje não vai dar, que já é hora de jantar, disse-lhe ao desafio. Amanhã vai estar mais vento respondeu, Talvez ajude.